quarta-feira, janeiro 04, 2006


A passagem de Ano
Raul ficou surpreendido quando leu o bilhete que Fatima lhe colocou discretamente na mão, sem que as outras raparigas notassem. Ela aproveitara o momento em que o grupo dos rapazes se cruzou com o grupo das raparigas, num domingo, na confusão do mercado. Tinha de ser breve a troca de olhares e de sinais pois as velhas castigariam com uma bofetada qualquer tentativa de intimidade.
O papel dizia:
"Quero passar entrar no Ano Novo junto de ti, na fonte do amor. Vem buscar-me meia hora antes das badaladas da meia noite. Valente".
Raul sabia o que isso significava: cumprir o ritual da fonte era a certeza de amor frutuoso, eterno. Os amantes que bebessem água durante a passagem do ano teriam assegurada uma ligação até ao fim da vida, plena de compreensão, ternura, prazeres carnais, filhos, fortuna.
Toda a gente na aldeia sabia isso, e não se registava um único caso em que a magia da fonte não tivesse resultado.

Mas o bilhete de Fatima também significava outra coisa: um risco sem peso nem medida. Até esse momento o seu namoro com Fatima fora unicamente troca de olhares, de frases de circunstância sempre na presença de outros, adolescentes ou adultos . Por duas vezes a sua mão tinha tocado a mão de Fátima. Foi o suficiente para Raul perceber que a pele da rapariga não era mais que a pele da sua pele.
Outra vez ela disse-lhe, "gostava de viver junto ao mar, acordar de manhã a ouvir as ondas, tomar banho nua ao fim da tarde". Foi o suficiente para Raul entender que a rapariga conhecia o ritmo das marés e a vibração do seu corpo.
Uma outra vez ela disse: "Sei que o teu pai tem centenas de cavalos. É verdade que é o animal mais belo que existe, mas eu gostava de ter um grande rebanho de cabras e vê-las trepar até ao cimo dos rochedos ". Foi o suficiente para Raul perceber que a rapariga sabia da beleza mas também era forte e resistente para ultrapassar as provas da vida.
Tudo isto era a parte boa. A parte má é que o projecto de Fatima era de dificil realização. Na aldeia todos passavam o ano em família, vinte ou trinta pessoas em cada casa, comendo passas de uva e identificando desejos .
Ele poderia correr o risco de sair de casa no meio da confusão, mas Fatima , sempre controlada pela família, como poderia ela desaparecer nessa hora em que todos têm que abraçar todos ?
E não podia esquecer o Pai de Fatima, um comerciamte austero, viúvo, conhecido por não perdoar aos que não cumpriam o prometido nos negócios e por ser de uma dureza enorme para com os criados. Falava pouco com uma voz grave e rouca, e olhava sempre para o horizonte.
Ele era cruel, ainda recentemente fora comentado na aldeia o modo como ele chicoteara uma nova criadita recentemente contratada para acompanhar Fátima.
Era justamente isso que Raul temia:o chicote, ou outro castigo, como por exemplo não sair de casa durante o ano que ia começar , ter de ir viver para o deserto para uma longínqua propriedade da família.
Mesmo assim arriscou. Escapuliu-se de sua casa antes da meia noite e escondeu-se diante da casa de Fátima , atrás de uns arbustos, esperando. O queixo e as pernas tremiam-lhe com o medo.
Pouco faltava para a meia noite quando viu que uma perna de Fatima saía por pequena janela, enquanto o barulho da festa continuava no interior. Nunca tinha sentido nada tão excitante.
Raul foi ao encontro de Fátima, pela primeira vez tocou o seu corpo, abraçou-a, beijaram-se.
"Depressa, estamos atrasados, não podemos falhar" disse a rapariga.
De mãos dadas correram por entre ruas desertas em direcção à fonte do amor que ficava no Jardim da Fraternidade, à entrada da aldeia.
Mal tinham começado a correr ouviram barulho de alguém que saía da casa, por outra janela.
Fatima quis olhar para trás para ver o que se passava mas Raul puxou-a com força, faltava pouco para meia noite. Porém era quase certo que alguém caminhava apressadamente atrás dos jovens namorados.
Seria que o Pai de Fátima os perseguia ?
Para a magia funcionar cada amante tinha de molhar as mãos na fonte e dar os dedos a lamber ao parceiro, enquanto se abraçavam.
Outros casais, de mãos dadas, acompanhavam-nos no caminho, todos abraçados e escondendo as caras. Estava Lua Nova, quase nada se via. Ao fundo já se vislumbrava a fila de amantes que cumpria o ritual.Ouvia-se o barulho da água a cair da fonte.
As regras eram estritas, os dedos tinham de ser molhados enquanto soavam as badaladas. Depois, cada casal desaparecia na escuridão e só se ouvia o barulho dos arbustos que exalavam um forte cheiro a jasmim.
Tocavam já as últimas badaladas quando se aproximaram da fonte, Raul e Fátima respiraram fundo:tinham conseguido chegar a tempo, iriam cumprir o rituam e assim assegurar o amor que para sempre os uniria. Reparam então que um derradeiro casal cumpria o ritual.
Raul e Fatima desapareciam na escuridão, a rapariga oferecia já os lábios ao rapaz, quando repararam que o último casal que se apressava a cumprir o ritual era o Pai de Fátima e a criadinha , abraçados a lamber as mãos um ao outro.
Raul reparou que passavam já uns minutos da meia noite.

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