terça-feira, junho 28, 2011

Vale a pena o pavor

Ainda criança. Meu pai era um grande leitor, embora não tivéssemos muitos livros em casa. Éramos pobres; minha infância foi difícil. Uma época triste, não trago boas lembranças. Um dia ele me presenteou com Os Contos dos Irmãos Grimms, uma edição completa. Acho que isso hoje não é mais permitido, alguns contos dos Grimms traumatizam a criança. Além de ofender certa crítica literária de vertente feminista, segundo a qual os contos dos Grimms perpetuam uma dominação machista, a sujeição e a passividade femininas. Ou de teor marxista: a injustiça social e a opressão de classe é resolvida por meios mágicos, o que escamotea a realidade da luta de classes. Ou que a intenção dos irmãos Grimms era educar as crianças, mas para a sociedade burguesa, para a ideologia da concorrência desenfreada típica do capitalismo. Engraçado era que meu pai era marxista, mas ele não enxergava tão longe. Para ele, o livro era bom e merecia a minha atenção. Mas eu até posso entender algumas dessas ressalvas, aquelas de que alguns contos são em demasia “adultos”. Originalmente esses contos se destinavam realmente ao público adulto; a intenção dos Grimms era preservar a tradição camponesa oral alemã. Há contos de confrontação com a morte, de estranhos duendes (Rumpelstilskin), ansiosos por almas ingênuas, pactos demoníacos, pais que dão os filhos em troca de prosperidade, bruxas, dragões… Eu adorava esses contos, os mais pesados. Mas lia-os de dia. À noite tinha medo, muito medo; todos os bichos perversos presentes nos contos importunavam-me o sono. Contudo, acho que valeu a pena tanto pavor na infância.

Entrevista a Karleno Bocarro  (in Poesia Diversidade)



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