sábado, maio 04, 2024

  A última missão

Reformei-me há três meses. Não tem sido fácil. Trabalhei trinta anos para a mesma organização, num trabalho com algumas missões no estrangeiro, mas basicamente rotineiro, com tarefas burocráticas, análise de dados, papelada, muitos relatórios. Habituei-me a escrever cada dia e gosto de escrever. Por isso aqui estou eu, a redigir estas linhas. Na verdade, não sei como ocupar o tempo. Não necessitam de conhecer o meu nome, mas, caso queiram contactar, chamem-me Ismael. Trabalhei para os serviços de segurança interna. É verdade, fui espião. Relatarei em seguida minha última missão. O meu chefe, ao qual deram a alcunha de Málito, pela sua halitose crónica, enviou-me a Angola. A missão não se revestia de dificuldade especial, tratava-se de vigiar e relatar posteriormente a estadia em Luanda de um personagem conhecido da cena política portuguesa. Suspeitavam, informou-me o Málito, que esse indivíduo, a que demos o nome de código de Truta, estivesse envolvido em negócios escuros e que iria receber o pagamento relativo a tais atividades. Podia estar relacionado com droga, armas, tráfico de seres humanos, financiamento partidário ou algo parecido. O meu papel seria observar e encontrar provas documentais do pagamento por tais negócios escuros. Em Luanda, o nosso contacto de apoio, era, como habitualmente, o Jaime Bunda, essa figura simpática, sorridente e desenrascada, que nos ajudava, com a mesma eficácia que ajudava a CIA, a Mossad e o KGB, ou melhor, o novo KGB. Segundo Jaime Bunda me informou,Truta reunir-se-ia com o empresário angolano, cujo nome de código é Djembé, no Beach Club, que é "the place to be" nesta Luanda frenética e desenfreada. Jaime Bunda reservou uma mesa ao lado do meu alvo, onde eu poderia observar e filmar. Não quero e não devo dar mais detalhes de como o fazemos. Jaime Bunda pediu à Raquel (sim, sempre a Raquel) para me acompanhar, desempenhando o papel de namorada, dando assim mais credibilidade à operação. Não quero e não devo dar mais informação a respeito da minha relação com a Raquel, já que ela continua a efetuar missões "undercover", junto do mundo diplomático em Angola e Portugal. Posteriormente escrevi no meu relatório o seguinte: "O Djembé entregou 75 000 euros ao Truta, alegadamente por um estudo por ele efetuado sobre um assunto qualquer, mas não consegui saber qual. O pagamento foi em dinheiro vivo. O Djembé perguntou se o Truta queria companhia feminina. Truta respondeu que não, que era casado. Por esse motivo não consegui produzir imagens comprometedoras. Não tendo nada mais relevante a relatar, termino o presente relatório. Com os melhores cumprimentos." E assinei. Uma vez de regresso a Lisboa, o Málito atribuiu-me a segunda parte da missão: saber o destino do dinheiro. Uma vez mais, não quero e não devo entrar em pormenores, nem revelar os detalhes deste tipo de operações. Contudo, posso assegurar que me bastaram três dias para saber que o dinheiro não tinha sido depositado em nenhum banco, nem guardado em nenhum cofre. Também verifiquei pessoalmente que não se encontrava na casa do Truta. Estava, sim, no seu gabinete, num edifício onde trabalhavam políticos muito importantes. Encontrava-se escondido entre as páginas de alguns livros, como eu pude confirmar presencialmente e mesmo fotografar, quando me infiltrei no edifício, disfarçado de funcionário da empresa encarregada das limpeza . Depois, mostrei as fotografias ao Málito, e expliquei-lhe que o dinheiro estava nos livros da quarta prateleira, à direita, a contar de baixo. A seguir o Málito fez uma chamada telefónica. Não percebi se do outro lado estava um homem ou uma mulher. Sei, isso sim, que Málito me disse, após desligar: "Conseguimos o que queríamos. A tua última missão foi um êxito. Agora vais gozar a tua reforma."

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